segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Do sertão nordestino para Jerusalém: a história de David de Andrade Guilherme Faiguenboim e Paulo Valadares

Do sertão nordestino para Jerusalém: a história de David de Andrade
Guilherme Faiguenboim e Paulo Valadares

Quem o vê não imagina o caminho que ele percorreu. Parecido com o escritor cubano Cabrera Infante, talvez 1,60 m, a barba bem cuidada, sempre de paletó e óculos, ele tem a aparência de um intelectual urbano. O que não deixa de ser verdade, pois é um alto funcionário do governo brasileiro. Porém o que chama atenção é a kipá (solidéu) preta fosca, que indica sua origem étnica e observância religiosa.
Ao se apresentar, diz: David de Andrade. O que dá mais uma pista de sua história pessoal. Andrade é um sobrenome usado por descendentes de cristãos-novos portugueses. No seu caso, de gente que vive no sertão brasileiro há mais de 200 anos. Para ser reconhecido como judeu, saiu do Brasil, estudou as Sagradas Escrituras, dialogou com as autoridades rabínicas, até conseguir o seu reconhecimento. Não como um convertido, mas como um retornado, remanescente de antigos conversos cristãos-novos.
David de Andrade vem do Ceará, mais precisamente do sertão, de uma remota região chamada Inhamuns. Um dos lugares mais inóspitos do país, isolado dos grandes centros, desconectado do mundo moderno, onde somente agora, com a ajuda das estradas e da televisão, vai-se alterando o perfil cultural. Ali, a organização política, econômica e cultural ainda segue fórmulas medievais. As linhagens familiares e seus patriarcas ainda são reverenciados, ouvidos e obedecidos. Esta região começou a ter a presença européia a partir do século 18. Numa época em que era povoada por indígenas, chegou gente do litoral atlântico, principalmente de Pernambuco. Lá os holandeses mantiveram um enclave, entre 1630 a 1654, onde era permitido aos judeus viver e trabalhar. Muitos destes sesmeiros que buscaram o sertão cearense eram descendentes de cristãos-novos, que procuravam recomeçar a vida num lugar distante do rigor da Inquisição. Surgem assim no Ceará os clãs dos Feitosa, dos Monte (descendem de cinco irmãos cristãos-novos espanhóis), dos Saraiva Leão (aparentados a Santa Tereza de Ávila e a David Senior Coronel, patrocinador do rabino Menasseh Ben Israel), dos Mourão, dos Araújo (ou Martins) Chaves etc. 
Andrade e Chaves
David de Andrade nasceu com o nome de Francivaldo Monteiro de Andrade, em Arneiróz, uma das pequenas cidades de Inhamuns, em 29 de janeiro de 1963. É filho do comerciante Francisco Elias de Andrade e de Maria Valda Monteiro Chaves, ambos membros de proeminentes famílias locais. Os Andrades são tradicionalmente ligados à Igreja Católica, sendo que vários deles foram sacerdotes. Um tio de seu avô paterno, monsenhor Odorico de Andrade, manteve estreitas relações com o Vaticano. 
Não há literatura genealógica que indique claramente as origens dos Andrades sertanejos, mesmo sabendo-se da importância política dos seus descendentes. Um deles, Antônio Paes de Andrade, professor de Direito e deputado, chegou a ser Presidente da República por três ou quatro dias na década de 80. Mas isto não é tão estranho assim. No mundo ibérico há o fenômeno chamado pelo historiador Elias Lipiner de "genealogicídio", ou seja a omissão e a retirada de ancestrais cristãos-novos das genealogias publicadas. O sobrenome Andrade não é estranho a onomástica sefardita. Existe uma família judia de Amsterdã e de Londres: os Costa Andrade e há diversas vítimas da Inquisição com este sobrenome. 
Já os Araújo Chaves são mais conhecidos genealogicamente. Sabe-se que eles descendem de um grande latifundiário do século 18, o coronel Manuel Martins Chaves, que deixou Penedo, na região dominada pelos holandeses. Ele e seus descendentes foram para o sertão do Ceará onde se mesclaram aos Feitosas e aos Montes. Não se sabe se originalmente esta família fosse cristã-nova ou que tenha se tornado após casamentos sucessivos dentro deste grupo.
A família é tradicionalmente endogâmica. Os avós maternos de David de Andrade são Pedro de Araújo Chaves e Elvira Monteiro Chaves, primos entre si. O próprio Pedro já fora casado com outra irmã de Elvira. Os Araújo Chaves ocupam toda uma região de Arneiróz, chamada de Cachoeira de Fora. Ali eles se casam dentro da parentela, respeitando a liderança dos mais velhos. São pacíficos criadores de cabras e mantém relações apenas formais com o catolicismo. 
Quem sou eu?
Mesmo com a queda do Tribunal do Santo Ofício, em 1821 os costumes não se alteraram. No sertão todos continuam sob suspeita, vigiando os desvios comportamentais de uns e outros: heterodoxia, feitiçaria e crimes sexuais são punidos pela comunidade. Heterodoxia são os costumes de cristãos-novos e o protestantismo nascente, em religião; o liberalismo e a maçonaria em política. Chegou-se ao momento em que estas quatro formas de heterodoxia são simplificadas genericamente como judaísmo. Já feitiçaria, entenda-se como as religiões afro-brasileiras. Os desvios sexuais são o homossexualismo e o adultério feminino. Numa sociedade patriarcal, deve-se ter certeza da verdadeira origem de cada um de seus personagens. 
E como funciona a punição dessas transgressões? Nenhuma delas é punida mais com leis escritas ou pelas autoridades. A primeira punição é por boicote. Não se compra ou se vende nada à pessoa transgressora. Mas também não se diz à pessoa que ela está sendo punida. Porém o cerco vai se apertando até a família ficar segregada. As agressões físicas hoje são raras. Mesmo assim David de Andrade se lembra de ter a sua casa apedrejada por penitentes católicos encapuçados, durante as comemorações da Semana Santa. A vítima não se queixa, para não confirmar o que todos fingem não saber: que a sua família é "diferente", ela foge da "normalidade". 
Quando David de Andrade procurou o bispo para tentar ser seminarista católico, foi recusado com a desculpa ou a verdade de que era muito jovem para esta opção. Mesmo sabendo que a família paterna possuía padres em sua árvore genealógica, ele precisou da indicação informal de um filho de juiz para poder cursar o seminário. Se não fosse a dúvida existencial, Andrade poderia - graças aos seus talentos intelectuais - ser mais um daqueles padres nordestinos.
Aceito no seminário, Andrade fez mais política que faria fora dali. Ligou-se a um grupo que empregava a chamada "Teologia da Libertação" no seu cotidiano. Tornou-se correspondente de um jornal importante de Fortaleza. Mas ao denunciar um potentado local de seqüestro e torturas numa menor, teve que fugir para São Paulo. Nesta cidade aproveitou para cursar Filosofia na USP. 
Nesse momento a sua vida tomou outro rumo. Estudou também Economia e entrou para a administração pública através de um difícil concurso público (60 mil candidatos para 100 vagas). 
Mas continuava a sua insatisfação existencial. Ser judeu não lhe passava pela cabeça. Afinal esta é uma palavra quase proibida no Ceará. Lá não se consegue conversar dez minutos sobre o tema com ninguém. Porém, em São Paulo, ele fez amizade com um intelectual judeu, Hélio Schwartzman e, a partir de observações e comparações do cotidiano daquela família, pôde estabelecer semelhanças com a sua. Na primeira conversa com parentes de sua geração, todos o desaconselharam a revelar-se como "judeu". "Você está querendo humilhar nossa família?", perguntou seu irmão. Apenas o avô materno deu a entender que aprovava o novo caminho do neto.
Enfim, judeu
Andrade não esmoreceu. Conseguiu através do jornalista de origem cristã-nova, H. D. Cordeiro, o endereço de outro intelectual da mesma origem, Francisco Corrêa Neto. E através de correspondência passou a estudar a religião judaica. Preparado, apresentou-se ao Rabino Simonovits, do Beit Chabad, e passou a estudar com ele. Quando surgiu uma oportunidade para estudar em Israel, apresentou-se prontamente. Ele chegou em Israel levando uma carta de apresentação do Rabino Abraham Anidjar, do Rio de Janeiro. Queria estudar a religião judaica e foi o que fez. Ao mesmo tempo, com a ajuda de amigos - como a poetisa Shulamith Halevy e o rabino Avihail - procurava sensibilizar a burocracia rabínica para o seu problema. Chegou até ir à audiência com o Rabino-Chefe de Israel, sempre esbarrando em como provar a sua ascendência judaica. O rabino Soloveitchik foi um dos interventores no caso que lhe deu a vitória. Depois de muita luta, conseguiu a sua documentação como "judeu", e a sua entrada para o judaísmo, não como "conversão", mas como "retorno".
Voltando ao Brasil incorporou-se novamente ao Ministério de onde era funcionário. Curiosamente sua chefe era Claudia Maria Costin, filha de um milionário romeno chamado Calmanovitz, que alterara o nome e a religião para fugir da Europa. Educada como católica romana, a ministra Costin só foi saber de sua origem judaica quando adulta. Descoberta sua identidade, procurou rabinos do Beit Chabad, que estudaram a sua genealogia e a trouxeram para a sinagoga. Hoje a Sra. Costin é observante da religião judaica pela vertente Chabad.
O cotidiano de David de Andrade é hoje de um judeu religioso. Ele se veste como tal, faz as rezas apropriadas e estuda com os rabinos. No dia 28 de agosto de 1999, casou-se com uma moça religiosa chamada Rivka Frida Esses. O casamento foi celebrado pelo rabino Begun, do Chabad, auxiliado por sete outros rabinos. O ritual seguiu todas as formalidades hassídicas. O casal hoje tem dois filhos.

olhos
"Ser judeu não lhe passava pela cabeça. Afinal esta é uma palavra quase proibida no 
Ceará"
"Para ser reconhecido como judeu, saiu do Brasil e foi dialogar com as autoridades rabínicas"

* Guilherme Faiguenboim e Paulo Valadares escreveram este texto que foi publicado na revista O Hebreu em março de 2002. A revista deixou de circular. Ambos, junto com Anna Rosa Campagnano são ps autores do livro “O Dicionário Sefaradi de Sobrenomes”.





Um comentário:

  1. Sou conterrâneo do David Andrade.
    Vivemos a nossa infância juntos,lembro de muitas coisas descritas por ele nesta matéria. Ele tem razão quando diz que a família dele sempre foi vista de maneira diferente.
    Posso afirmar que ainda hoje é vista assim mesmo.
    Parabéns pela matéria. Fico feliz de saber que ele se encontrou com as suas raízes.
    Gostaria de saber se ele tem alguma obra publicada e quais são elas.

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