Do
sertão nordestino para Jerusalém: a história de David de Andrade
Guilherme Faiguenboim e Paulo Valadares

Quem
o vê não imagina o caminho que ele percorreu. Parecido com o escritor
cubano Cabrera Infante, talvez 1,60 m, a barba bem cuidada, sempre de paletó
e óculos, ele tem a aparência de um intelectual urbano. O que não deixa de
ser verdade, pois é um alto funcionário do governo brasileiro. Porém o que
chama atenção é a kipá (solidéu) preta fosca, que indica
sua origem étnica e observância religiosa.
Ao se apresentar, diz: David de Andrade. O que dá mais uma pista de sua
história pessoal. Andrade é um sobrenome usado por descendentes de
cristãos-novos portugueses. No seu caso, de gente que vive no sertão
brasileiro há mais de 200 anos. Para ser reconhecido como judeu, saiu do
Brasil, estudou as Sagradas Escrituras, dialogou com as autoridades
rabínicas, até conseguir o seu reconhecimento. Não como um convertido, mas
como um retornado, remanescente de antigos conversos cristãos-novos.
David de Andrade vem do Ceará, mais precisamente do sertão, de uma remota
região chamada Inhamuns. Um dos lugares mais inóspitos do país, isolado dos
grandes centros, desconectado do mundo moderno, onde somente agora, com a
ajuda das estradas e da televisão, vai-se alterando o perfil cultural. Ali,
a organização política, econômica e cultural ainda segue fórmulas
medievais. As linhagens familiares e seus patriarcas ainda são
reverenciados, ouvidos e obedecidos. Esta região começou a ter a presença
européia a partir do século 18. Numa época em que era povoada por
indígenas, chegou gente do litoral atlântico, principalmente de Pernambuco.
Lá os holandeses mantiveram um enclave, entre 1630 a 1654, onde era
permitido aos judeus viver e trabalhar. Muitos destes sesmeiros que buscaram
o sertão cearense eram descendentes de cristãos-novos, que procuravam
recomeçar a vida num lugar distante do rigor da Inquisição. Surgem assim no
Ceará os clãs dos Feitosa, dos Monte (descendem de cinco irmãos
cristãos-novos espanhóis), dos Saraiva Leão (aparentados a Santa Tereza de
Ávila e a David Senior Coronel, patrocinador do rabino Menasseh Ben
Israel), dos Mourão, dos Araújo (ou Martins) Chaves etc.
Andrade e Chaves
David de Andrade nasceu com o nome de Francivaldo Monteiro de Andrade, em
Arneiróz, uma das pequenas cidades de Inhamuns, em 29 de janeiro de 1963. É
filho do comerciante Francisco Elias de Andrade e de Maria Valda Monteiro
Chaves, ambos membros de proeminentes famílias locais. Os Andrades são
tradicionalmente ligados à Igreja Católica, sendo que vários deles foram
sacerdotes. Um tio de seu avô paterno, monsenhor Odorico de Andrade,
manteve estreitas relações com o Vaticano.
Não há literatura genealógica que indique claramente as origens dos
Andrades sertanejos, mesmo sabendo-se da importância política dos seus
descendentes. Um deles, Antônio Paes de Andrade, professor de Direito e
deputado, chegou a ser Presidente da República por três ou quatro dias na
década de 80. Mas isto não é tão estranho assim. No mundo ibérico há o
fenômeno chamado pelo historiador Elias Lipiner de
"genealogicídio", ou seja a omissão e a retirada de ancestrais
cristãos-novos das genealogias publicadas. O sobrenome Andrade não é
estranho a onomástica sefardita. Existe uma família judia de Amsterdã e de
Londres: os Costa Andrade e há diversas vítimas da Inquisição com este
sobrenome.
Já os Araújo Chaves são mais conhecidos genealogicamente. Sabe-se que eles
descendem de um grande latifundiário do século 18, o coronel Manuel Martins
Chaves, que deixou Penedo, na região dominada pelos holandeses. Ele e seus
descendentes foram para o sertão do Ceará onde se mesclaram aos Feitosas e
aos Montes. Não se sabe se originalmente esta família fosse cristã-nova ou
que tenha se tornado após casamentos sucessivos dentro deste grupo.
A família é tradicionalmente endogâmica. Os avós maternos de David de
Andrade são Pedro de Araújo Chaves e Elvira Monteiro Chaves, primos entre
si. O próprio Pedro já fora casado com outra irmã de Elvira. Os Araújo
Chaves ocupam toda uma região de Arneiróz, chamada de Cachoeira de Fora.
Ali eles se casam dentro da parentela, respeitando a liderança dos mais
velhos. São pacíficos criadores de cabras e mantém relações apenas formais
com o catolicismo.
Quem sou eu?
Mesmo com a queda do Tribunal do Santo Ofício, em 1821 os costumes não se
alteraram. No sertão todos continuam sob suspeita, vigiando os desvios
comportamentais de uns e outros: heterodoxia, feitiçaria e crimes sexuais
são punidos pela comunidade. Heterodoxia são os costumes de cristãos-novos
e o protestantismo nascente, em religião; o liberalismo e a maçonaria em política. Chegou-se
ao momento em que estas quatro formas de heterodoxia são simplificadas
genericamente como judaísmo. Já feitiçaria, entenda-se como as religiões
afro-brasileiras. Os desvios sexuais são o homossexualismo e o adultério
feminino. Numa sociedade patriarcal, deve-se ter certeza da verdadeira
origem de cada um de seus personagens.
E como funciona a punição dessas transgressões? Nenhuma delas é punida mais
com leis escritas ou pelas autoridades. A primeira punição é por boicote.
Não se compra ou se vende nada à pessoa transgressora. Mas também não se
diz à pessoa que ela está sendo punida. Porém o cerco vai se apertando até
a família ficar segregada. As agressões físicas hoje são raras. Mesmo assim
David de Andrade se lembra de ter a sua casa apedrejada por penitentes
católicos encapuçados, durante as comemorações da Semana Santa. A vítima
não se queixa, para não confirmar o que todos fingem não saber: que a sua
família é "diferente", ela foge da "normalidade".
Quando David de Andrade procurou o bispo para tentar ser seminarista
católico, foi recusado com a desculpa ou a verdade de que era muito jovem
para esta opção. Mesmo sabendo que a família paterna possuía padres em sua
árvore genealógica, ele precisou da indicação informal de um filho de juiz
para poder cursar o seminário. Se não fosse a dúvida existencial, Andrade
poderia - graças aos seus talentos intelectuais - ser mais um daqueles
padres nordestinos.
Aceito no seminário, Andrade fez mais política que faria fora dali.
Ligou-se a um grupo que empregava a chamada "Teologia da
Libertação" no seu cotidiano. Tornou-se correspondente de um jornal
importante de Fortaleza. Mas ao denunciar um potentado local de seqüestro e
torturas numa menor, teve que fugir para São Paulo. Nesta cidade aproveitou
para cursar Filosofia na USP.
Nesse momento a sua vida tomou outro rumo. Estudou também Economia e entrou
para a administração pública através de um difícil concurso público (60 mil
candidatos para 100 vagas).
Mas continuava a sua insatisfação existencial. Ser judeu não lhe passava
pela cabeça. Afinal esta é uma palavra quase proibida no Ceará. Lá não se
consegue conversar dez minutos sobre o tema com ninguém. Porém, em São Paulo, ele fez
amizade com um intelectual judeu, Hélio Schwartzman e, a partir de
observações e comparações do cotidiano daquela família, pôde estabelecer
semelhanças com a sua. Na primeira conversa com parentes de sua geração,
todos o desaconselharam a revelar-se como "judeu". "Você
está querendo humilhar nossa família?", perguntou seu irmão. Apenas o
avô materno deu a entender que aprovava o novo caminho do neto.
Enfim, judeu
Andrade não esmoreceu. Conseguiu através do jornalista de origem
cristã-nova, H. D. Cordeiro, o endereço de outro intelectual da mesma
origem, Francisco Corrêa Neto. E através de correspondência passou a
estudar a religião judaica. Preparado, apresentou-se ao Rabino Simonovits,
do Beit Chabad, e passou a estudar com ele. Quando surgiu uma oportunidade
para estudar em Israel, apresentou-se prontamente. Ele chegou em Israel
levando uma carta de apresentação do Rabino Abraham Anidjar, do Rio de
Janeiro. Queria estudar a religião judaica e foi o que fez. Ao mesmo tempo,
com a ajuda de amigos - como a poetisa Shulamith Halevy e o rabino Avihail
- procurava sensibilizar a burocracia rabínica para o seu problema. Chegou
até ir à audiência com o Rabino-Chefe de Israel, sempre esbarrando em como
provar a sua ascendência judaica. O rabino Soloveitchik foi um dos
interventores no caso que lhe deu a vitória. Depois de muita luta,
conseguiu a sua documentação como "judeu", e a sua entrada para o
judaísmo, não como "conversão", mas como "retorno".
Voltando ao Brasil incorporou-se novamente ao Ministério de onde era
funcionário. Curiosamente sua chefe era Claudia Maria Costin, filha de um
milionário romeno chamado Calmanovitz, que alterara o nome e a religião
para fugir da Europa. Educada como católica romana, a ministra Costin só
foi saber de sua origem judaica quando adulta. Descoberta sua identidade,
procurou rabinos do Beit Chabad, que estudaram a sua genealogia e a
trouxeram para a sinagoga. Hoje a Sra. Costin é observante da religião
judaica pela vertente Chabad.
O cotidiano de David de Andrade é hoje de um judeu religioso. Ele se veste
como tal, faz as rezas apropriadas e estuda com os rabinos. No dia 28 de
agosto de 1999, casou-se com uma moça religiosa chamada Rivka Frida Esses.
O casamento foi celebrado pelo rabino Begun, do Chabad, auxiliado por sete
outros rabinos. O ritual seguiu todas as formalidades hassídicas. O casal
hoje tem dois filhos.
olhos
"Ser judeu não lhe passava pela cabeça. Afinal esta é uma palavra
quase proibida no
Ceará"
"Para ser reconhecido como judeu, saiu do Brasil e foi dialogar com as
autoridades rabínicas"
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Guilherme Faiguenboim e Paulo Valadares escreveram este texto que foi
publicado na revista O Hebreu em março de 2002. A revista deixou
de circular. Ambos, junto com Anna Rosa Campagnano são ps autores do livro
“O Dicionário Sefaradi de Sobrenomes”.
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Sou conterrâneo do David Andrade.
ResponderExcluirVivemos a nossa infância juntos,lembro de muitas coisas descritas por ele nesta matéria. Ele tem razão quando diz que a família dele sempre foi vista de maneira diferente.
Posso afirmar que ainda hoje é vista assim mesmo.
Parabéns pela matéria. Fico feliz de saber que ele se encontrou com as suas raízes.
Gostaria de saber se ele tem alguma obra publicada e quais são elas.